O FETHAB em MT e sua legalidade: Breve análise sore a natureza jurídica e constitucionalidade da sua destinação aos municípios
Por Murilo Boscoli Dias – advogado membro da Comissão de Direito Tributário da OAB Sinop
Historicamente, sempre quando falamos de cobrança de algum valor por parte do Estado em face dos seus cidadãos, se entra em um campo muito sensível e suscetível a polêmicas, uma vez que, a cada dia que passa o brasileiro é sufocado ante as exigências pecuniárias impostas pelos entes públicos, bem como outras obrigações desnecessárias exigidas por estes.
Diante desse cenário, um dos assuntos que mais tem sido alvo de polêmicas e reviravoltas nos últimos anos no Estado de Mato Grosso é o Fundo Estadual de Transporte e Habitação (FETHAB) e as suas contribuições.O referido Fundo Estadual foi instituído no Mato Grosso a partir da lei 7.263/00, tendo como principal função a destinação de recursos para realizar a execução e manutenção de obrar e projetos voltados a transporte e habitação em todo território mato grossense. A legislação ainda previu a criação de outros 3 Fundos Estaduais, sendo que os respectivos fundos serão voltados para o desenvolvimento da atividade que se relacionam. São estes: a) Fundo de Apoio á Cultura e a Soja (FACS); b) Fundo de Apoio a Bovinocultura de Corte (FABOV); c) Fundo de Apoio á Madeira (FAMAD). Ainda, foi prevista na legislação forma de financiamento do Instituto Mato-Grossense do Algodão-IMAmt.
Prevê a legislação que os respectivos fundos serão financiados das seguintes formas :
A) FETHAB: I) 9,605% (nove inteiros e seiscentos e cinco milésimos por cento) do valor da UPF/MT, vigente no período, por tonelada de soja transportada; II) 11,76% (onze inteiros e setenta e seis centésimos por cento) do valor da UPF/MT vigente no período, por cabeça de gado transportada para o abate; III) 9,305% (nove inteiros e trezentos e cinco milésimos por cento) do valor da UPF/MT, vigente no período, por metro cúbico de madeira transportada; IV) 10,235% (dez inteiros e duzentos e trinta e cinco milésimos por cento) do valor da UPFMT, vigente no período, por tonelada de algodão transportada; V) 0,5% (meio por cento) do valor da UPF/MT vigente no período, exigida por metro cúbico a cada operação ou prestação que promover a importação, exportação, transporte ou saída de gás natural destinado a produção de energia termoelétrica; VI) R$ 0,18 (dezoito centavos), por litro de óleo diesel fornecido, que deverá ser retido pelos contribuintes, localizados ou não no território de Mato Grosso, responsáveis pela retenção e Recolhimento do ICMS ao Estado ; VI) 0,004% (quatro milésimos por cento) do valor da UPFMT vigente no período por quilowatt-hora (kWh) comercializado para as usinas Hidrelétricas ou Centrais Hidrelétricas;
B) FACS: 1,26% (um inteiro e vinte e seis centésimos por cento) do valor da UPF/MT, vigente no período, por tonelada de soja transportada;
C) FABOV: 1,26% (um inteiro e vinte e seis centésimos por cento) do valor da UPF/MT, vigente no período, por cabeça de gado transportada para o abate;
D) FAMAD: 1,855% (um inteiro e oitocentos e cinquenta e cinco milésimos por cento) do valor da UPF/MT, vigente no período, por metro cúbico de madeira transportada;
E) Imamt: 34,695% (trinta e quatro inteiros e seiscentos e noventa e cinco milésimos por cento) do valor da UPF/MT vigente no período, por tonelada de algodão transportada,
De acordo com a lei que institui o FETHAB, o contribuinte que realizasse o pagamento dos valores aos fundos acima, teria como beneficio o diferimento para pagamento do ICMS nas operações internas, com gado, soja e madeira, criando dessa forma um tratamento diferenciado para os contribuintes.
Mal criado o FETHAB, o mesmo já passou a ser questionado quanto a sua constitucionalidade, nascendo assim diversas ações judiciais que visavam afastar a cobrança das respectivas contribuições, sob os mais diversos argumentos, onde entretanto estes pairavam sob um ponto central, entender se a referida legislação tratou de criar nova espécie tributária ou não no Estado de Mato Grosso. Se se entendesse pelo sim, a mesma seria inconstitucional pelas mais diversas formas, mas principalmente pela sua natureza jurídica que se trataria de uma contribuição, onde os Estados não tem competência residual para criar contribuições ou impostos além daquelas previstas no art. 149, §1º da Constituição Federal.
Entretanto, de forma muito astuta, diga-se de passagem, o legislador estadual se utilizou de um artificio um tanto quanto simples, para afastar a natureza tributária das contribuições para o FETHAB e demais fundos, qual seja: foi conferida facultatividade para as mesmas, ou seja, os contribuintes podem optar por contribuir com o fundo ou não, condicionado a possibilidade de concessão do diferimento em caso positivo.
Como se sabe, o tributo para se caracterizar como tal tem um elemento essencial a ele inerente que é de se tratar de uma prestação pecuniária compulsória, nos termos do art. 3º do Código Tributário Nacional. Uma vez não prevista a obrigação na prestação, esta deixa de ser tributo, e passa a ter qualquer outra natureza.
Tais indagações judiciais chegaram ao Supremo Tribunal Federal, que nos autos do Agravo de Instrumento 859321, de Relatoria do Ministro Dias Toffoli, confirmou a constitucionalidade do FETHAB, afastando sua natureza tributária ante a faculdade que o contribuinte tem de optar pelo diferimento do ICMS, citando precedente da corte no caso do julgamento da FUNDERSUL, que é o equivalente ao FETHAB no Estado do Mato Grosso do Sul.
Embora tenhamos algumas ressalvas quanto a constitucionalidade do FETHAB- uma vez que este continua sendo obrigatório para alguns contribuintes, como as usinas hidrelétricas e aqueles que promovem a importação e exportação, transporte ou saída de gás natural , bem como estamos declinados a aceitar sua natureza natureza tributária- fato é que o mesmo continua sendo cobrado pelo Estado do Mato Grosso, onde sua arrecadação tem atingido valores expressivos, ante a grande circulação de produção no qual incida o fundo, sendo previsto na Lei de Orçamento Anual de 2015 uma arrecadação de algo em torno de R$ 953. 103.598,00 ( novecentos e cinquenta e três milhões cento e três mil quinhentos e noventa e oito reais) , sendo uma verdadeira “galinha de ouro para o governo".
Dito isso, em Janeiro de 2014 foi publicado no Diário Oficial do Estado a lei 10.051/14, de autoria do Deputado José Riva, que prevê a destinação de 50% dos recursos provenientes ao FETHAB para os munícipios, bem como prevendo a forma como os recursos deverão ser repassados.
O que era para ser algo comemorado por alguns, uma vez que permite que os recursos sejam utilizados e revertidos de forma mais próxima da população através do ente municipal, virou na verdade mais um imbróglio jurídico que ganha novos capítulos a cada dia, onde temos de um lado a Aprosoja, defendendo nesse momento o não repasse dos recursos aos Munícipios e a Associação Mato grossense dos Municípios, lutando pelo direito destes terem acessos as verbas do fundo.
O último capítulo dessa novela se deu em março desse ano, quando em decisão liminar proferida pela Ministra Rosa Webber, do Supremo Tribunal Federal, determinou que seja cumprida a lei 10.051/14, e que sejam repassados os recursos para os municípios.
Feitas tais apontamentos, temos que, embora entendemos o repasse para os municípios de recursos provenientes do FETHAB seja uma tentativa interessante de se buscar melhor qualidade quanto a manutenção e pavimentação das estradas, não podemos deixar de assinalar que vemos com certo cuidado a constitucionalidade da lei que previu a destinação de tais verbas aos munícipios. Explicamos:
A Constituição Federal, ao instituir o sistema Republicano no país, o fez com a observância de alguns princípios básicos, dentre eles a separação dos poderes, dividindo as funções e atribuições de manutenção da ordem no país entre o Executivo, Legislativo e Judiciário, onde cada qual desempenha um papel importante nesse cenário.
O Poder Executivo, tem como chefe, a nível federal a figura do Presidente da República, a nível estadual os Governadores e nos Munícipios os Prefeitos.
É conferido ao Executivo a gestão e manutenção dos bens e serviços coletivos, sendo que é, de forma simples, dele a responsabilidade por gastar os recursos públicos, visando o interesse da população. Ainda, como uma forma de garantir a separação dos poderes, bem como a manutenção das atividades exercidas pelo Executivo, a Constituição Federal garantiu que algumas leis ( que são de competência do legislativo), teriam iniciativas exclusivas do executivo, em evidente exercício atípico de suas funções.
Dentre essas leis que são de iniciativa do Executivo, são aquelas que versem sobre orçamento público bem como a destinação de suas receitas, uma vez que cabe ao gestor público saber de que forma vai ser utilizada as verbas públicas, desde que respeitado os limites impostos pela lei.
Dessa forma, a lei 10.051/14 ao vincular a destinação de 50% dos recursos do FETHAB, bem como prever os critérios no qual o mesmo deve ser partilhado, o fez usurpando competência que era de iniciativa do chefe do Executivo, uma vez que impossibilita que o gestor público possa definir de que melhor forma pode ser empregada a quantidade de recursos a determinada situação, usurpando assim a iniciativa constitucional do Executivo quanto a prever em lei de que forma será gasto e destinado as verbas provenientes do Fundo Estadual de Transporte e Habitação, conforme arts. 165 e 61, §1º da Constituição Federal.
Para ilustrar bem o raciocínio acima, destacamos que o STF no julgamento da ADI 820-0/RS, de relatoria do Ministro Eros Grau, declarou inconstitucional lei do Estado do Rio Grande do Sul que previa a destinação de que determinado percentual de verbas públicas voltadas a educação deveriam serem gastas para a manutenção de escolas, bem como a periodicidade e a forma como as mesmas seriam utilizadas. Entendeu no referido julgado, que o legislativa ao vincular a destinação de verbas o fez usurpando competência orçamentária relativa ao Executivo, restando caracterizada a inconstitucionalidade formal da norma.
A referida legislação estadual ao determinar que 50% do produto da arrecadação com o FETHAB seria destinada aos Munícipios, de forma direta já reduziu os recursos no qual o Executivo Estadual teria para aplica-los, caracterizando uma vinculação de receitas, implicando em usurpação de competência quanto a sua iniciativa.
Muito poderia se argumentar que o decreto 2.416/14, ao regulamentar as disposições trazidas na art. 15 da lei do FETHAB, com redação dada pela lei 10.051/14, acabou por disciplinar o repasse aos Munícipios mediante ato de iniciativa do Executivo, implicando em uma validação da norma, entretanto, tal raciocínio não merece guarida, uma vez que este regulamentou norma inconstitucional, ou seja, o decreto tira como requisito de sua condição de validade uma norma que não deveria pertencer ao ordenamento jurídico, não podendo determinada legislação ter como sua condição de existência pautada em norma invalida, ocorrendo o fenômeno da inconstitucionalidade por arrastamento ou tração.
Dessa forma, embora entendemos que a iniciativa de transferir recursos do FETHAB aos municípios seja algo até que interessante, uma vez que estes se encontram mais próximos dos problemas e necessidade da população em geral, podendo detectar de melhor forma as suas necessidade e como os recursos podem ser gastos, existe uma ordem constitucional e institucional a ser observada e mantida em nosso ordenamento, onde não é porque uma legislação por se mostrar benéfica que não necessita observar alguns preceitos de ordem superior, sob pena de falência do próprio ordenamento jurídico, na medida em que se estaria abrindo precedentes e brechas para situações diversas.
Ressaltamos ainda, que a opinião aqui esboçada não tem o condão de se criar uma verdade absoluta, e inclusive, como qualquer outra, esta sujeita a alterações. O que se quer na verdade, é auxiliarmos com o debate a respeito do tema, bem como a legalidade e dos repasses do FETHAB, uma vez que é de interesse coletivo que estejamos diante de determinada situação no qual não paire dúvidas jurídicas, que estão presentes desde a edição da lei 7.263/00, uma vez que permite maior previsibilidade das relações e da utilização da verba pública.
Assim, ante a esse cenário de dúvidas, idas e vindas sobre o FETHAB e sua destinação aos Munícipios, uma coisa é certa, ainda teremos noticias sobre novos desenrolares dessa briga que envolve sua destinação e cobrança, onde esperamos sinceramente, que o mesmo seja utilizado de forma consciente e para o bem coletivo, e não como instrumento político e de interesse pessoal dos governantes.
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